Sob o Céu de Novembro

Um convite ao resgate do olhar perdido e à leveza dos pequenos encontros

Redação
Por Redação 7 Min Leitura
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Por: Railane Borges

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Fazia tempo que andava pelas ruas sem olhar ao redor. Sua mente havia sido sequestrada por um emaranhado de tarefas, questionamentos, retóricas vãs, discordâncias conceituais e os porquês. O fluxo do pensamento fazia seu sangue correr veloz dentro das veias e seu coração batia tão rápido quanto as asas das raras andorinhas que resistiam em seus rasantes ao crepúsculo. Para onde tinham ido todas as andorinhas da infância? Teria apenas parado de olhar o céu?

Em um poste no quarteirão que a separava do seu destino alguém escreveu com uma letra garranchada: “Se a criança que você foi viesse te visitar, será que ela te reconheceria?” Isso a fez rir. Não um riso nostálgico, mas constrangido. Desviou o olhar daquelas palavras malditas postas ali quase como de propósito. Sabia da resposta e quis espantar os pensamentos antes que se tornassem parte do mesmo emaranhado que já tirava tanto do seu sossego. Se perguntava se mais alguém se sentia assim. E se sentissem, por onde andavam?

Silêncio entre nós

Somado a tudo, sentia-se muito só. As perguntas e desejos de sua menina curiosa continuavam lá. Mas o peso, o ar, o vento que lhe roçava o rosto, tudo era diferente. Principalmente pela morte do usual compartilhamento de impressões através da tradição oral. Tinham morrido sem direito a velório as conversas olho no olho. De um dia para o outro. Mesmo aquelas ruas da cidade que tanto amou não pareciam mais as mesmas.

As casas antigas, às quais seus olhos estavam acostumados, deram lugar a canteiros de obras e arranha-céus. Todos andavam com pressa, sisudos, as caras enfiadas em suas telas, os ouvidos tapados por fones. O som do mundo ruiu. Por isso talvez fosse impossível que percebessem que, mesmo em meio a um eterno verão, as andorinhas já não voavam mais juntas. O futuro que outrora fora um baú trancado frente ao qual se debruçava otimista se transformara em um precipício. Um buraco cinza, concretado e gentrificado. Sem fundo. Um buraco que engoliu sonhos, um a um.

Enquanto esperava pelo ônibus que nunca chegava, se lembrou de um dia ouvir de sua vó, na também finada padaria ‘modelo pão quente’, o tamanho de sua sorte.

‘Os nascidos depois dos anos oitenta não foram filhos da guerra, não conheceram a fome. Não souberam jamais como era quando tínhamos raras opções à disposição. Vocês podem ser o que quiserem’.

Ilusões do progresso

Aquelas palavras a fizeram crescer com um equívoco dentro de si. Sua vó fora enganada pelo discurso neoliberal. Uma espécie de sucesso garantido fazia morada nas palavras de uma filha da revolução industrial. Mas ela, oriunda de uma outra revolução, a digital, já não tinha nenhuma certeza de futuro. Via com pessimismo as patologias sociais tomarem um enorme espaço na vida das pessoas. Antibióticos e uma extensa cobertura vacinal não eram eficazes para refrear as ondas incessantes que abalavam a saúde mental nesses tempos.

Ali estávamos todos. O limite curto entre vida e morte. A espera constante pelo fim do mundo sendo anunciada em toda parte. O que para sua vó significara evolução e tecnologia, uma mudança positiva que redirecionava os rumos da humanidade desde o pessimismo da fome ao otimismo de novos tempos, aos poucos transformou-se na certeza do colapso de um sistema econômico fadado ao fracasso. No fundo, pensava que era uma coisa boa que a vó não precisasse viver o horror do ‘futuro’ que se estabeleceu depois.

Tinha ido longe demais. Como podia ainda pensar tantas coisas em um intervalo tão curto de tempo? Distraída e sonolenta, quase perdera o ônibus. Ao entrar sentou-se no único assento disponível. Cumprimentou com um aceno a pessoa ao seu lado. Respirou fundo, fez força para se recompor. Concentrou-se em pensar nas demandas por vir.

Antes que o mundo acabasse, em fogo ou água, ainda teria que preparar o almoço e pagar aquele boleto esquecido. Buscar se equilibrar entre as ausências sentidas e as ausências impostas. Em algum momento teria que telefonar para Beatriz e tocar nos assuntos que gostaria de esquecer. Ou parar de fugir da terapia. As horas pareciam ter encolhido. Tinha uma certeza dentro de si: em um dia, já não cabia mais a mesma quantidade de coisas. Ou seria qualidade de coisas?

Festa no céu

A um ponto de descer, subiram no ônibus uma senhora e uma menina de laço de fita no cabelo. Sua roupa colorida fazia coro com seu sorriso leve, seu olhar fortuito, de quem adorava entrar em um ônibus pois não o fazia como uma obrigação diária. O semblante inconfundível de um futuro em branco. Para aquela criança, o ônibus era um passeio eventual. De onde estava, não pôde evitar olhá-la. Pelo reflexo da janela, entre duas mangueiras que o 38A cruzou ligeiro, enquanto os últimos raios de sol perpassavam seus galhos, foi que viu. Fitava a menina que olhava para fora. No céu, uma festa de pássaros.

Sua mente finalmente se esvaziou, desaguou na serenidade daqueles voos e por um breve momento, era quem sempre foi e tudo pareceu bem. Foi como perdeu o ponto e pela primeira vez em anos, decidiu caminhar enquanto recuperava o olhar atento para o ocaso de novembro. Depois da noite escura, há sempre o brilho intenso de estrelas que surgem no pano de fundo do mundo. Ainda havia muito a ser visto.

*Railane Borges é atriz e cineasta

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