Maternidade, sobrecarga e resistência: por um Dia das Mães que não romantize a exaustão

Ser mãe ainda é um ato político. E resistir à exaustão virou um projeto de sobrevivência. Neste Dia das Mães, não queremos flores. Queremos justiça

Mariana Tripode
Por Mariana Tripode  - Advogada 11 Min Leitura
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Entre afeto e exaustão, elas seguem resistindo — muitas vezes sozinhas, invisíveis e sobrecarregadasImagem: Freepik
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Todo segundo domingo de maio o Brasil celebra o Dia das Mães. São campanhas publicitárias emocionadas, postagens nas redes sociais exaltando o “amor incondicional” e homenagens tocantes sobre a força quase divina das mães. Mas por trás da floricultura simbólica que se monta em torno da data, está o silêncio desconfortável sobre a estrutura que invisibiliza, explora e abandona essas mesmas mulheres que se exaltam um dia por ano e se esquecem nos outros 364.

Maternidade um ato de resistência

É preciso fazer uma ruptura. Retirar o véu da romantização e afirmar: a maternidade, no Brasil, é um ato de resistência diante de uma estrutura que suga, exige, cobra e pouco devolve. Para muitas mulheres, ser mãe não é uma escolha livre, mas uma imposição marcada por desigualdades sociais, raciais, econômicas e jurídicas. Ser mãe, hoje, é carregar o mundo nas costas enquanto o sistema aponta o dedo.
Não se trata de negar a potência da maternagem, mas de afirmar que ela não pode ser construída sobre o sacrifício compulsório. Mães precisam de direitos, apoio, corresponsabilidade e liberdade. Este artigo é um chamado à verdade: antes de flores, as mães precisam de justiça.

Desigualdade

A maternidade no Brasil é atravessada pela desigualdade. Dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais mostram que mais de 90 mil crianças foram registradas sem o nome do pai em 2024. Isso não é uma coincidência individual ou uma “escolha das mães”, como tantos discursos misóginos insistem em afirmar. É o retrato de um país que tolera — e, em certa medida, normaliza — o abandono paterno.

Somos uma sociedade em que o “pai ausente” é socialmente aceitável, mas a “mãe presente” é julgada, sobrecarregada e punida. A responsabilização pelas crianças recai quase exclusivamente sobre as mulheres, e isso se acentua ainda mais após separações. É ela quem acorda de madrugada, leva ao posto de saúde, busca vaga na creche, faz a comida, ajuda na lição de casa e, quando muito, ainda precisa convencer o Estado — e às vezes o próprio Judiciário — de que faz tudo isso sozinha.

Mães são culpabilizadas por tudo o que “dá errado” na vida dos filhos

O abandono é institucional. O Brasil tem um grave déficit de vagas em creches públicas, principalmente nas periferias urbanas. Políticas públicas para apoio à maternidade são escassas, mal executadas ou inexistentes. Quando há, são tratadas como “benefícios assistenciais” e não como obrigações do Estado. A maternidade, que deveria ser acompanhada por uma rede sólida de suporte, é deixada nas mãos de quem já carrega tudo: as próprias mães.

Além de cuidar, alimentar, educar e proteger, as mães ainda são culpabilizadas por tudo o que “dá errado” no percurso da vida de seus filhos. O discurso é perverso: se a criança apresenta algum problema de comportamento, é “culpa da mãe”; se falta à escola, é “culpa da mãe”; se denuncia o pai por violência, é “culpa da mãe”.

Nos tribunais, essa lógica se reproduz. O sistema de justiça familiar, ainda profundamente patriarcal, trata as mães como “guardadoras naturais” das crianças, mas cobra delas perfeição absoluta. Basta uma denúncia de violência doméstica, ou uma ação de alimentos, para que ela seja acusada de alienação parental. Muitas mulheres perdem a guarda por exercerem o direito de proteger seus filhos.

A guarda compartilhada, que deveria ser um instrumento de equilíbrio, é muitas vezes imposta sem considerar o histórico de violência, abandono ou negligência por parte dos pais. O discurso da coparentalidade abstrata ignora as desigualdades materiais, emocionais e afetivas entre os genitores. Na prática, a “compartilhada” recai quase sempre sobre as mães, enquanto os pais recebem a guarda como símbolo de igualdade, sem cumprir com as responsabilidades correspondentes.
A mãe que denuncia é punida. A mãe que exige pensão é vista como interesseira. A mãe que reclama da sobrecarga é taxada de ingrata. Em suma: a mulher que ousa se insurgir contra o modelo de maternidade sacrifical é silenciada — ou judicializada.

Trabalho invisível e não remunerado

A maternidade é uma das maiores engrenagens da economia do cuidado — um trabalho invisível, não remunerado e historicamente realizado por mulheres. Cozinhar, limpar, acompanhar consultas médicas, acolher emocionalmente, supervisionar lições de casa, administrar horários escolares, agendar vacinas — todas essas tarefas são exigidas das mães, mas nunca computadas como “trabalho”.
De acordo com dados do IBGE, mulheres brasileiras dedicam em média 21,4 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidado, contra 11 horas dos homens. Quando a mulher é mãe solo, esse número é ainda maior. E quando é mãe solo e negra, acumula também as tarefas da sobrevivência em um país que a marginaliza.

Essa economia do cuidado sustenta a força de trabalho produtiva do país. São mães que permitem que outros adultos trabalhem, estudem e se desloquem, porque estão cuidando dos filhos que o Estado não cuida. Mas esse trabalho é invisibilizado — não aparece no PIB, não é valorizado pela previdência, não é respeitado nos direitos trabalhistas.

A ausência de políticas de redistribuição do cuidado aprofunda a desigualdade. O Estado lava as mãos. Os homens se ausentam. E a mulher-mãe continua, em silêncio ou em grito, fazendo o mundo girar.

Resistência em campo minado

Maternar é resistir em um campo minado. E esse campo inclui não apenas a ausência de apoio, mas a presença de violências estruturais que atravessam a experiência materna. É preciso nomeá-las: violência vicária, violência patrimonial, violência institucional, violência processual.

A violência vicária se manifesta quando os filhos são usados como instrumentos de retaliação contra as mães. Homens que agrediram suas ex-companheiras recorrem ao Judiciário para pleitear a guarda, deslegitimar denúncias ou impedir a autonomia materna. A criança vira campo de batalha. A mulher vira alvo. E a justiça, muitas vezes, se torna cúmplice.

Violência institucional

A violência institucional ocorre quando profissionais do sistema de justiça desqualificam as mães, ignoram seus relatos, minimizam a violência ou priorizam a “manutenção do vínculo paterno” acima da proteção integral da criança. Mães são desacreditadas, patologizadas, desacatadas. A palavra da mulher segue sendo colocada sob suspeita, mesmo quando a história se repete, e as provas se acumulam.

A violência processual é o uso do sistema jurídico para punir mulheres por exercerem seus direitos. Ação atrás de ação. Recursos infindáveis. Representações infundadas. Tudo para cansar, silenciar e submeter. Essa forma de “lawfare doméstico” é hoje uma das ferramentas mais comuns para continuar violentando mulheres mesmo após o fim da relação conjugal.

Por fim, a violência patrimonial: a dificuldade em receber pensão, a ocultação de bens, o empobrecimento da mãe como consequência direta da separação. O rompimento da relação muitas vezes significa o colapso financeiro da mulher, que passa a sustentar os filhos sozinha, enquanto o pai se esquiva, manipula ou finge insolvência.

Elas resistem

Diante de tudo isso, as mães continuam. Continuam levantando cedo, preparando lancheiras, acalmando choros, indo a audiências, cozinhando, ensinando, protegendo. Mas fazem mais do que isso: elas resistem.

Resistem quando denunciam, mesmo sabendo que serão julgadas. Quando reivindicam pensão, mesmo sendo chamadas de interesseiras. Quando dizem “não” ao convívio com um pai violento, mesmo sendo ameaçadas com perda da guarda. Quando interrompem ciclos de violência, mesmo sem rede de apoio. Quando decidem maternar de forma consciente, feminista, antirracista e transformadora.

Resistência revolucionária

Essa resistência cotidiana é revolucionária. Porque não é feita nas praças de guerra, mas nas cozinhas apertadas, nos corredores dos fóruns, nas reuniões escolares, nas filas dos postos de saúde. É a mãe que não romantiza sua exaustão, mas exige direitos. Que não aceita o discurso de que “é assim mesmo”, mas que grita que não deveria ser.

É a mãe que luta pelo direito de descansar. Que exige que cuidar não seja sinônimo de se anular. Que quer creche, lazer, segurança, liberdade, afeto e respeito. Que não aceita que o cuidado a destrua — quer que ele a sustente.

Neste Dia das Mães, em vez de rosas e corações desenhados à mão, que tal devolver às mulheres aquilo que lhes é devido? Pensões pagas. Processos com perspectiva de gênero. Juízes e promotores capacitados. Políticas públicas eficazes. Serviços de apoio à maternidade. Direito ao descanso. Direito à escolha.

Mais do que homenagens simbólicas, o que as mães precisam é que o mundo que tanto exigiu delas aprenda, enfim, a retribuir. Que os direitos sexuais e reprodutivos sejam respeitados. Que a guarda compartilhada seja uma escolha consciente e não uma imposição cega. Que o cuidado seja reconhecido como trabalho. Que as mães possam descansar — não como exceção, mas como regra.

Porque, no Brasil de 2025, ser mãe ainda é um ato político. E resistir à exaustão virou um projeto de sobrevivência.

Neste Dia das Mães, não queremos flores. Queremos justiça.

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Posted by Mariana Tripode Advogada
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Advogada formada pela Universidade de Mogi das Cruzes /SP desde 2012. Especialista em Direito da Mulher e Direito de Gênero pela escola da Magistratura do Distrito Federal, pós-graduanda em Direitos das Mulheres e Práticas para uma Advocacia Feminista pela Escola Superior de Direito, pós-graduanda em Ciências Criminais e Interseccionalidades pela Verbo Jurídico. Foi Presidente da Comissão da Mulher da ABA Brasília – Associação Brasileira dos Advogados, idealizadora do primeiro escritório de Advocacia Para Mulheres no Distrito Federal e CEO da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres-EBDM.
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