Doença mental na Polícia Federal: é preciso responsabilizar quem descumpre e quem persegue

or trás da imagem de eficiência, a Polícia Federal convive com índices alarmantes de suicídio e uma cultura institucional que silencia o sofrimento e persegue quem busca ajuda

Redação
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A Polícia Federal brasileira é frequentemente associada a operações de combate à corrupção e repressão ao crime organizado. Contudo, por trás das ações espetaculares e da imagem de eficiência institucional, existe um problema silencioso e devastador: o adoecimento mental de seus servidores. Apesar de ser uma das instituições policiais com maior taxa proporcional de suicídio no mundo, com índice quatro vezes maior que o da população brasileira em geral, a PF mantém, historicamente, uma postura negligente, repressiva e até hostil diante do sofrimento psíquico dos seus quadros.

Não se trata apenas da ausência de políticas eficazes e sistemáticas de cuidado, mas sobretudo de uma cultura institucional que desconfia da dor, suspeita da fragilidade e rejeita a vulnerabilidade como incompatível com o ethos policial. A forma como a Polícia Federal lida com a saúde mental de seus profissionais revela como ela enxerga a si mesma, não como um corpo composto por pessoas, mas como uma máquina cujo funcionamento não pode ser comprometido por “falhas humanas”. O resultado é a criminalização do sofrimento e a indiferença diante de sinais claros de distúrbio emocional.

Um grito ignorado


O primeiro caso paradigmático envolveu um policial federal que, durante meses, expressou em suas redes sociais sinais evidentes de sofrimento psíquico. Postagens com teor depressivo, frases reveladas de esgotamento emocional e um sentimento de abandono foram ignoradas pela instituição. Ele trabalhava normalmente, portando arma de fogo, mesmo em quadro em que isso não seria recomendado. Até onde se sabe, apesar dos sinais, nenhum colega ou superior hierárquico interveio institucionalmente, nenhum canal de escuta foi acionado, nenhuma medida preventiva foi aplicada. A instituição optou pelo silêncio até o desenvolvimento trágico: o servidor tirou a própria vida. Uma morte não apenas evitável, mas claramente anunciada, que recebeu como resposta, novamente, o silêncio institucional.

Ajuda criminalizada


O segundo caso segue uma lógica inversa, porém igualmente destrutiva. Um servidor, registrando seus sintomas — consequência de casos seguidos de assédio no ambiente de trabalho — procurou ajuda médica e iniciou acompanhamento psiquiátrico e psicológico, sendo afastado de suas funções para tratamento. Em vez de acolher sua atitude responsável e madura, a Polícia Federal reagiu com desconfiança. A instituição questionou publicamente a veracidade da condição clínica e instaurou um inquérito sob a acusação absurda de estelionato, alegando que o servidor fingia estar doente para escapar de suas obrigações. As redes sociais do servidor, com raras fotos de lazer em família, que buscavam passar uma impressão de normalidade, tornaram-se instrumentos de acusação, como se sorrir em uma foto ou ir a uma palestra fosse incompatível com a existência de uma depressão clínica.

Esses dois exemplos revelam um paradoxo brutal: o servidor que sofre em silêncio é abandonado; o servidor que pede ajuda é perseguido. Em ambos os casos, a instituição exime-se da responsabilidade coletiva sobre a saúde mental dos seus membros e responde com a mesma ferramenta útil: o controle disciplinar. A lógica da suspeita e do autoritarismo, própria da atividade investigativa, invade perigosamente o terreno do sofrimento pessoal, criando uma atmosfera tóxica de assédio moral e desamparo institucional.

Sem acolhimento, sem mudança


Por isso, não basta apenas disponibilizar psiquiatras e psicólogos, enquanto a cultura organizacional segue promovendo perseguições e silêncios. É o mesmo que distribuir coletes salva-vidas enquanto o casco do navio permanece furado. Não haverá mudanças significativas sem responsabilização efetiva dos gestores, tanto aqueles que omitem socorro quanto aqueles que perseguem os que buscam ajuda. O comprometimento institucional com a saúde mental deve envolver a responsabilização dos dirigentes, garantindo que atitudes negligentes ou persecutórias não permaneçam impunes.

O enfrentamento sério e responsável do adoecimento psíquico na Polícia Federal exige uma transformação profunda na cultura institucional. Exige investimentos contínuos em saúde mental, implementação de políticas robustas de acolhimento, escuta ativa e proteção dos trabalhadores. Sobretudo, exige coragem para romper com a ideia equivocada de que sofrimento é fraqueza ou ameaça, e reconhecê-lo como um pedido legítimo de apoio num ambiente profissional que exige demais, mas protege muito pouco.

Enquanto a Polícia Federal não assumir sua responsabilidade, seguirá contabilizando mortes evitáveis, adoecimentos silenciosos e consolidando uma cultura interna marcada pelo medo e pela desesperança. Uma instituição que persegue quem pede ajuda e ignora quem sofre em silêncio está fadada a adoecer por dentro, até que seus próprios alicerces comecem a ruir.

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