Denunciar um agressor já é, por si só, um ato de coragem. Requer atravessar a dor, o medo e o descrédito. Mas o que muitas mulheres não sabem — e o que o sistema parece não querer admitir — é que, ao fazê-lo, podem se tornar alvo de uma nova forma de perseguição: a judicial.
Tem se intensificado, em todo o país, um movimento sutil, mas devastador: mulheres que ousam romper o silêncio sobre violências sofridas — especialmente violência sexual e doméstica — têm sido processadas por seus agressores. A alegação? Supostos “danos morais”, “difamação” ou “denunciação caluniosa”. Mesmo quando suas denúncias foram feitas dentro dos canais legais, acompanhadas de boletins de ocorrência, laudos, perícias e relatos consistentes.
Lawfare de gênero
Esse fenômeno revela o que chamamos de lawfare de gênero: o uso estratégico da máquina judiciária como forma de retaliação e silenciamento. Ao invés de proteger quem denuncia, o sistema vem sendo instrumentalizado para punir. A mulher, já marcada pelo trauma da violência, passa a ser arrastada para uma nova via de sofrimento — agora, como ré em ações cíveis ou criminais.
O problema se agrava quando o Judiciário, em vez de frear esse tipo de abuso, chancela tais práticas sob o pretexto de garantir “direito de defesa” ao agressor. A consequência disso é um recado claro e brutal: se você denunciar, pode ser punida.
Essa retaliação judicial não ocorre no vácuo. Ela se apoia em um Judiciário ainda profundamente marcado por estigmas de gênero, onde o relato da mulher é sistematicamente colocado em dúvida, a ausência de condenação do agressor é tratada como “prova de inocência”, e a responsabilização da vítima se naturaliza.
Violência Institucional
Não é à toa que o Conselho Nacional de Justiça editou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Esse instrumento orienta magistradas e magistrados a analisarem os casos com sensibilidade às assimetrias históricas entre homens e mulheres, especialmente nas situações em que o direito é usado como arma para perseguir quem denuncia.
Trata-se, em última instância, de reconhecer que a judicialização da denúncia é uma forma perversa de violência institucional. Quando o Estado permite que uma mulher que buscou ajuda seja transformada em alvo, ele se torna cúmplice.
Não estamos falando de exceções. Estamos falando de um padrão que precisa ser urgentemente nomeado, enfrentado e interrompido.
Porque enquanto o Judiciário continuar permitindo que o direito seja usado para punir quem denuncia, ele estará fortalecendo não a justiça — mas o silêncio.